A GUERRA É NOSSA! OS INTERESSES DO IMPÉRIO BRASILEIRO NA REGIÃO PLATINA
A
Guerra do Paraguai foi o maior e mais sangrento conflito armado entre os países
da América Latina. Historiadores estimam que cerca de 23.917 soldados
brasileiros foram mortos, feridos e desaparecidos ao final dos confrontos. Ao
todo, o Império mobilizou e incorporou ao seu Exército mais de 135 mil homens
de todas as províncias,
entre militares profissionais, integrantes da Guarda Nacional, voluntários da
pátria, recrutas e escravizados.
O
confronto iniciou-se nos meses finais de 1864 e foi o resultado de disputas
territoriais, comerciais e políticas entre os países envolvidos. Travada nas
imediações da Bacia do Rio da Prata, a guerra conseguiu unir, pela primeira
vez, dois inimigos históricos que disputavam a hegemonia do continente no século
XIX. Brasil e Argentina se aliaram, juntamente com o Uruguai governado por
Venâncio Flores, para combater as pretensões de Francisco Solano López, ditador
da República do Paraguai desde 1862. Desta união resultou a assinatura, em 1º
de maio de 1865, do Tratado da Tríplice Aliança, que estabeleceu os critérios
da cooperação militar e do encerramento das atividades beligerantes. Dados os
aspectos gerais do confronto, o leitor há de se perguntar: qual foi o estopim?
Como a guerra começou?
Atualmente,
vincula-se na grande imprensa e no senso comum da população que o Brasil é um
país pacífico, cordial, hospitaleiro e sem envolvimento em grandes conflitos
externos.
Com
a estabilidade interna alcançada no início de 1850, depois dos anos conturbados
do Período Regencial (1831-1840) e a derrota dos movimentos separatistas, o
governo imperial pôde “[...] voltar-se para fora, expandir o prestígio e os
interesses do Estado Nacional, de base escravista, além de suas fronteiras”.
Assim,
no período da eclosão da Guerra do Paraguai, a política brasileira concentrava
seus esforços fora de suas fronteiras, a fim de demarcar seus interesses e
assegurar seu poder de influência. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, a
atuação diplomática e militar do Brasil no Prata, não pretendia alcançar o
equilíbrio das forças existentes na região. Mas, robustecer a influência do
Império em detrimento dos interesses dos outros países.
Tal
postura e visão diplomática levou o Império a invadir o Uruguai em 1864, a fim
de depor o presidente Bernardo Berro, do Partido Blanco, que desde 1860
implementou uma série de medidas nacionalistas que acabaram com os acordos
comerciais e políticos favoráveis ao Brasil, que eram especialmente vantajosos
à elite estancieira do Rio Grande do Sul.
A
interferência brasileira levou a reação paraguaia que, sem uma declaração
formal de guerra por parte de Solano López, capturou o navio Marquês de Olinda
em novembro e as invasões das províncias do Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
Desse modo, o Império viu-se obrigado a realizar uma grande mobilização
nacional para defender seus interesses e a integridade do território nacional.
Do horror à honra: a população
brasileira nas fileiras do Exército nacional
Integrar
as fileiras do Exército brasileiro, antes da Guerra do Paraguai, não era motivo
de orgulho, patriotismo ou ascensão social. Ao contrário, alistar-se como praça
nos tempos de paz era visto como um castigo, destino reservado a indivíduos
marginalizados, como vadios, mendigos e aqueles considerados ameaças à ordem
estabelecida.
A
vida nos quartéis também pouco oferecia de atrativo. De acordo com José Murilo
de Carvalho,
A
vida nos quartéis e nos navios da Armada era um verdadeiro inferno. Bebedeiras,
brigas, roubos e deserções eram frequentes. O castigo físico, embora proibido
pela lei de 1874, era usado rotineiramente. No Exército batia se com espada sem
corte ou vara de marmelo; na Armada usava-se a chibata.
Além
dos castigos físicos e a desmoralização nos escalões inferiores, outros fatores
que causavam rejeição ao serviço militar eram as precárias acomodações dos
quartéis e os soldos baixos e defasados. Razões pelas quais faziam os pobres
livres, que contavam com alguma proteção de senhores de terras, possuir um
horror à vida militar e esforçar-se para fugir dos agentes recrutadores que
rondavam suas vilas.
A
opção do Exército por sujeitos indesejáveis também estava presente na
legislação. As Instruções de 1822,
que regulamentaram o recrutamento militar no Brasil recém-independente,
institucionalizou a seletividade ao isentar amplos setores da sociedade,
enquanto submetiam à força os mais vulneráveis. Apesar de abranger teoricamente
todos os homens livres entre 18 e 35 anos, o sistema excluía os grupos
socialmente integrados - casados, estudantes, profissionais qualificados e
provedores familiares - concentrando a convocação nos estratos mais desprotegidos
da população.
Entretanto,
a clara estratégia e opção do recrutamento corriqueiro dos tempos de paz não
pôde ser praticada com a eclosão da guerra contra o Paraguai. Despossuído de um
Exército profissional numeroso, pois as tropas brasileiras não passavam de 15 mil homens, o governo
central ampliou sua capacidade de intervenção, recrutando até mesmo indivíduos
antes isentos.
Nesse
contexto de emergência, uma nova narrativa sobre o serviço militar foi
construída: o que antes era visto como motivo de vergonha e ocupação de
marginalizados, transformou-se em símbolo de coragem, patriotismo e abnegação.
Assim, toda a população era conclamada a defender os ultrajes sofridos pelo
Brasil. Ainda, de acordo com Carvalho, a Guerra do Paraguai foi o fator principal
da produção da identidade brasileira, pois nenhum acontecimento anterior
incitou as diferentes camadas da população em prol do cumprimento das
determinações do governo.
Nos
primeiros anos da Guerra do Paraguai, observou-se uma transformação na percepção
popular sobre as ações do Estado, que contribuiu para o crescente apoio ao
conflito. Se antes as medidas do governo imperial eram recebidas com temor e
resistência, especialmente pelas camadas mais pobres, que buscavam proteção nas
redes clientelistas dos grandes latifundiários ou procuravam o Estado apenas
para resolver necessidades urgentes, o enfrentamento contra um inimigo externo
alterou radicalmente esse cenário.
A
hostilidade em relação ao poder central dissipou-se, levando até mesmo
indivíduos tradicionalmente excluídos da vida política a se alistarem como
voluntários da pátria. Os símbolos nacionais - a bandeira, a figura do
imperador e as lideranças militares - passaram a ser reverenciados desde a
Corte até as províncias mais remotas. Este período representou, para muitos
brasileiros, seu primeiro contato efetivo com o Estado nacional.
As
mobilizações cívicas da província do Espírito Santo
durante o contexto da Guerra do Paraguai (1864-1870)
Como apresentado anteriormente, as disputas na Bacia do Rio da
Prata, ao sul do Império, tomaram dimensões nacionais e a população de todas as
províncias foram convocadas a participarem da luta. Dentro desse contexto, a
mobilização para o conflito era coordenada pelos governos provinciais que,
juntamente com as elites, buscavam estimular os diversos setores da população
para o confronto.
Às causas da guerra foram apresentadas de diversas formas que estimulavam o
engajamento, como cerimônias religiosas, desfiles de rua, peças de teatro,
canções, poemas e publicações na imprensa. Com isso, buscava-se produzir uma
série de elementos que prendessem a atenção do público, ao mesmo tempo que se
difundia princípios religiosos, morais, cívicos e políticos que eram
apresentados de uma só vez à população de uma
vila ou cidade.
Na província do Espírito Santo não foi diferente. Em um levantamento
realizado, encontrou-se de cerca de 112 ações
de mobilizações
cívicas, averiguadas a partir da análise dos periódicos Jornal da Vitoria e Correio
da Vitoria, bem como dos documentos do Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo (APEES) e do Arquivo Público Municipal de Vitória (APMV).
Abaixo, seguem listados os eventos patrióticos encontrados nas fontes e seu
respectivo significado dentro do contexto da Guerra do Paraguai:
●
A criação de associações
patrióticas: Criadas
para angariarem recursos destinados a auxiliar os cofres públicos no esforço de
guerra ou doados às famílias dos combatentes que deixaram o Espírito Santo e foram
lutar no fronte. Geralmente formadas por indivíduos com boas condições financeiras;
●
Bailes:
Foram realizados em diversas localidades da província, ao final da guerra, para
comemorar a vitória do Brasil.
●
Doações pecuniárias: Oferecimentos financeiros em prol
das ações de guerra. Alguns funcionários públicos doaram parte de seus salários
até o término do conflito, como também cidadãos mais abastados custeavam o
transporte de voluntários à capital, realizavam subscrições e ofereciam prêmios
aos que se alistassem primeiro para o Exército;
●
Eventos religiosos: Celebrações religiosas para
interceder ou comemorar os sucessos de
uma operação militar aliada. Para cada batalha
vencida, celebrava-se o Te Deum,
cerimônia solene de ação de graças realizada em dias de grandes efemérides do
Império, como o dia da promulgação da Constituição, 7 de setembro e o
aniversário do imperador. Com o prolongamento da guerra e a chegada de notícias
sobre os combatentes capixabas mortos, houve celebrações fúnebres e de 7º dia
em honra de suas memórias;
●
Recrutamento voluntário: Oferecimento voluntário para
ingressar nas tropas do Exército que se dirigiam ao sul do império. A maior parte do contingente da
província do Espírito Santo seguiu como voluntários
da pátria;
●
Festas cívicas: Festas de caráter civil para
comemorar as vitórias aliadas em batalhas importantes, bem como o resultado
final. A maior parte delas ocorreu em Vitória, capital da província, e reunia
um grande número de participantes. Algumas de suas características era o
desfile de bandas de música pelas ruas e a proclamação de discursos
patrióticos;
●
Teatro: Exibição de espetáculos com temática
patriótica ou sobre a Guerra do Paraguai. Em sua maioria, foram encenados na
capital e havia cobrança de ingresso;
●
Publicações de textos patrióticos,
poemas e discursos:
Publicações realizadas nos periódicos Jornal
da Vitoria e Correio da Vitoria
em favor da guerra ou de alguma personalidade que se pretendia exaltar, como o
presidente da província e Jovita Feitosa;
●
Vendas
de livros e estampas: Publicadas nas seções de anúncio dos jornais,
consistiam em obras e imagens com a temática militar, responsáveis por divulgar
os feitos e os heróis de guerra.
Durante
a Guerra do Paraguai, as mobilizações cívicas revelaram o expressivo
engajamento da população capixaba no conflito, particularmente dos habitantes
de Vitória, palco da maior concentração de eventos e manifestações patrióticas.
Registrou-se um amplo repertório de atividades em apoio à causa bélica, que
serviam tanto para divulgar os objetivos nacionais, quanto para celebrar os
triunfos das tropas aliadas. Essas iniciativas permitiram aos moradores do
Espírito Santo manifestar diversas formas de participação, através das quais
externalizaram seus interesses, visões, sentimentos nacionalistas e
inquietações relacionadas ao conflito. Ao longo do processo de mobilização, a
elite capixaba desempenhou o papel de auxiliar do governo provincial dentro do
esforço de guerra. Ela, cumprindo as determinações da administração local,
instrumentalizou seu capital social e econômico para fomentar o alistamento
voluntário. Por meio de um conjunto articulado de ações, desde incentivos
materiais até propaganda política em favor da guerra, buscou tanto legitimar-se
perante o poder central, quanto reafirmar seu domínio sobre a sociedade local.
Constata-se,
portanto, que o conjunto de celebrações não se resumia a ações individuais ou
manifestações populares espontâneas. Mas, uma resposta aos esforços de
convocação e incentivo do governo provincial e da elite, que buscavam
disseminar ideais como patriotismo, abnegação, coragem e união, valores que
motivaram centenas de homens a tornarem-se soldados no Exército em operação.
Como o leitor poderá apreciar no inventário documental, na província do Espírito Santo observou-se uma continuidade das mobilizações cívicas ao longo dos anos da guerra. Apesar do descontentamento gerado pelas ações bélicas, especialmente devido à frustração com a prolongação do conflito, que durou até 1º de março de 1870, isso não impediu a ocorrência de manifestações patrióticas e de apoio ao Império. Elas buscaram envolver diferentes segmentos da sociedade, permeando os interesses e as emoções dos capixabas que, mesmo distantes da frente de combate, se manifestaram sobre a guerra, engajando-se na organização de recursos humanos e materiais para o esforço bélico.
Marcos
Briel – Historiador
O inventário documental e o processo de preservação das fontes primárias
A
realização de inventários documentais representa uma etapa fundamental no
processo de salvaguarda do patrimônio histórico e cultural. Ao identificar,
registrar e descrever acervos de documentos, o inventário não apenas
sistematiza o conhecimento sobre as fontes existentes, mas também estabelece
critérios para a preservação e o acesso público. Essa prática se insere no
campo da Arquivologia como uma ferramenta essencial para compreender a
importância das fontes primárias.
As fontes históricas—
registros produzidos no momento ou próximo aos eventos que relatam — constituem
uma base imprescindível para a pesquisa histórica e para a construção da
memória coletiva. Sua preservação assegura que as gerações futuras possam
acessar informações autênticas e confiáveis, contribuindo para a continuidade
do saber e o fortalecimento da identidade cultural.
No
contexto das políticas públicas de memória, o inventário atua como um
instrumento estratégico, permitindo que instituições identifiquem lacunas,
estabeleçam prioridades de conservação e ampliem o diálogo com a sociedade por
meio da democratização do acesso à informação. Assim, inventariar e preservar
documentos não é apenas um ato técnico, mas também um compromisso ético com a
história, a cidadania e o direito à memória.
No que diz
respeito a digitalização de documentos históricos essa prática constitui uma ação
técnica e estratégica voltada à preservação, segurança e difusão do patrimônio
documental dessa forma, entende-se que esse processo atua como medida
preventiva contra a deterioração física causada por fatores ambientais,
manuseio inadequado ou acidentes. Ao criar cópias digitais de alta resolução, é
possível minimizar o acesso aos suportes originais e, ao mesmo tempo, assegurar
a permanência dos conteúdos para fins de consulta e pesquisa.
Do ponto
de vista técnico e legal, a digitalização deve ser conduzida com base em
protocolos que assegurem a autenticidade, a qualidade e a rastreabilidade dos
arquivos gerados. No Brasil, diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional
de Arquivos (CONARQ), especialmente por meio do Plano de Classificação e
da Tabela de Temporalidade de Documentos, orientam as práticas de
digitalização no âmbito da administração pública e instituições de memória. O e-ARQ
Brasil, modelo de requisitos para sistemas informatizados de gestão
arquivística de documentos, também oferece parâmetros fundamentais para
garantir a interoperabilidade, a preservação digital e a confiabilidade das
informações.
Em âmbito
internacional, recomendações da UNESCO, do Conselho Internacional de Arquivos
(ICA) e diretrizes como a ISO 13028:2010 (sobre digitalização de
documentos com valor probatório) fornecem bases normativas que reforçam boas
práticas e asseguram padrões de qualidade e segurança digital.
Além
disso, a digitalização favorece a ampliação do acesso à informação, eliminando
barreiras geográficas e temporais. Os documentos digitalizados podem ser
disponibilizados em plataformas online, repositórios institucionais ou sistemas
de gestão arquivística, democratizando o acesso ao conhecimento e promovendo
maior transparência e visibilidade das fontes históricas. Dessa forma, a
digitalização de acervos históricos representa não apenas uma resposta às
demandas contemporâneas por acesso à informação, mas também um compromisso com
a preservação da memória institucional, cultural e social.
Michel
Caldeira de Souza – Arquivista
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