sábado, 16 de agosto de 2025

As manifestações cívicas e a participação da população de Vitória na Guerra do Paraguai (1864–1870): inventário, transcrição e difusão cultural


APRESENTAÇÃO 

A GUERRA É NOSSA! OS INTERESSES DO IMPÉRIO BRASILEIRO NA REGIÃO PLATINA

A Guerra do Paraguai foi o maior e mais sangrento conflito armado entre os países da América Latina. Historiadores estimam que cerca de 23.917 soldados brasileiros foram mortos, feridos e desaparecidos ao final dos confrontos. Ao todo, o Império mobilizou e incorporou ao seu Exército mais de 135 mil homens de todas as províncias, entre militares profissionais, integrantes da Guarda Nacional, voluntários da pátria, recrutas e escravizados.

O confronto iniciou-se nos meses finais de 1864 e foi o resultado de disputas territoriais, comerciais e políticas entre os países envolvidos. Travada nas imediações da Bacia do Rio da Prata, a guerra conseguiu unir, pela primeira vez, dois inimigos históricos que disputavam a hegemonia do continente no século XIX. Brasil e Argentina se aliaram, juntamente com o Uruguai governado por Venâncio Flores, para combater as pretensões de Francisco Solano López, ditador da República do Paraguai desde 1862. Desta união resultou a assinatura, em 1º de maio de 1865, do Tratado da Tríplice Aliança, que estabeleceu os critérios da cooperação militar e do encerramento das atividades beligerantes. Dados os aspectos gerais do confronto, o leitor há de se perguntar: qual foi o estopim? Como a guerra começou?

Atualmente, vincula-se na grande imprensa e no senso comum da população que o Brasil é um país pacífico, cordial, hospitaleiro e sem envolvimento em grandes conflitos externos.

Com a estabilidade interna alcançada no início de 1850, depois dos anos conturbados do Período Regencial (1831-1840) e a derrota dos movimentos separatistas, o governo imperial pôde “[...] voltar-se para fora, expandir o prestígio e os interesses do Estado Nacional, de base escravista, além de suas fronteiras”.

Assim, no período da eclosão da Guerra do Paraguai, a política brasileira concentrava seus esforços fora de suas fronteiras, a fim de demarcar seus interesses e assegurar seu poder de influência. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, a atuação diplomática e militar do Brasil no Prata, não pretendia alcançar o equilíbrio das forças existentes na região. Mas, robustecer a influência do Império em detrimento dos interesses dos outros países. 

Tal postura e visão diplomática levou o Império a invadir o Uruguai em 1864, a fim de depor o presidente Bernardo Berro, do Partido Blanco, que desde 1860 implementou uma série de medidas nacionalistas que acabaram com os acordos comerciais e políticos favoráveis ao Brasil, que eram especialmente vantajosos à elite estancieira do Rio Grande do Sul.

A interferência brasileira levou a reação paraguaia que, sem uma declaração formal de guerra por parte de Solano López, capturou o navio Marquês de Olinda em novembro e as invasões das províncias do Mato Grosso e Rio Grande do Sul. Desse modo, o Império viu-se obrigado a realizar uma grande mobilização nacional para defender seus interesses e a integridade do território nacional.

Do horror à honra: a população brasileira nas fileiras do Exército nacional

Integrar as fileiras do Exército brasileiro, antes da Guerra do Paraguai, não era motivo de orgulho, patriotismo ou ascensão social. Ao contrário, alistar-se como praça nos tempos de paz era visto como um castigo, destino reservado a indivíduos marginalizados, como vadios, mendigos e aqueles considerados ameaças à ordem estabelecida.

A vida nos quartéis também pouco oferecia de atrativo. De acordo com José Murilo de Carvalho,

A vida nos quartéis e nos navios da Armada era um verdadeiro inferno. Bebedeiras, brigas, roubos e deserções eram frequentes. O castigo físico, embora proibido pela lei de 1874, era usado rotineiramente. No Exército batia se com espada sem corte ou vara de marmelo; na Armada usava-se a chibata.

Além dos castigos físicos e a desmoralização nos escalões inferiores, outros fatores que causavam rejeição ao serviço militar eram as precárias acomodações dos quartéis e os soldos baixos e defasados. Razões pelas quais faziam os pobres livres, que contavam com alguma proteção de senhores de terras, possuir um horror à vida militar e esforçar-se para fugir dos agentes recrutadores que rondavam suas vilas.

A opção do Exército por sujeitos indesejáveis também estava presente na legislação. As Instruções de 1822, que regulamentaram o recrutamento militar no Brasil recém-independente, institucionalizou a seletividade ao isentar amplos setores da sociedade, enquanto submetiam à força os mais vulneráveis. Apesar de abranger teoricamente todos os homens livres entre 18 e 35 anos, o sistema excluía os grupos socialmente integrados - casados, estudantes, profissionais qualificados e provedores familiares - concentrando a convocação nos estratos mais desprotegidos da população.

Entretanto, a clara estratégia e opção do recrutamento corriqueiro dos tempos de paz não pôde ser praticada com a eclosão da guerra contra o Paraguai. Despossuído de um Exército profissional numeroso, pois as tropas brasileiras não passavam de 15 mil homens, o governo central ampliou sua capacidade de intervenção, recrutando até mesmo indivíduos antes isentos.

Nesse contexto de emergência, uma nova narrativa sobre o serviço militar foi construída: o que antes era visto como motivo de vergonha e ocupação de marginalizados, transformou-se em símbolo de coragem, patriotismo e abnegação. Assim, toda a população era conclamada a defender os ultrajes sofridos pelo Brasil. Ainda, de acordo com Carvalho, a Guerra do Paraguai foi o fator principal da produção da identidade brasileira, pois nenhum acontecimento anterior incitou as diferentes camadas da população em prol do cumprimento das determinações do governo. 

Nos primeiros anos da Guerra do Paraguai, observou-se uma transformação na percepção popular sobre as ações do Estado, que contribuiu para o crescente apoio ao conflito. Se antes as medidas do governo imperial eram recebidas com temor e resistência, especialmente pelas camadas mais pobres, que buscavam proteção nas redes clientelistas dos grandes latifundiários ou procuravam o Estado apenas para resolver necessidades urgentes, o enfrentamento contra um inimigo externo alterou radicalmente esse cenário.

A hostilidade em relação ao poder central dissipou-se, levando até mesmo indivíduos tradicionalmente excluídos da vida política a se alistarem como voluntários da pátria. Os símbolos nacionais - a bandeira, a figura do imperador e as lideranças militares - passaram a ser reverenciados desde a Corte até as províncias mais remotas. Este período representou, para muitos brasileiros, seu primeiro contato efetivo com o Estado nacional.

As mobilizações cívicas da província do Espírito Santo durante o contexto da Guerra do Paraguai (1864-1870)

Como apresentado anteriormente, as disputas na Bacia do Rio da Prata, ao sul do Império, tomaram dimensões nacionais e a população de todas as províncias foram convocadas a participarem da luta. Dentro desse contexto, a mobilização para o conflito era coordenada pelos governos provinciais que, juntamente com as elites, buscavam estimular os diversos setores da população para o confronto.

Às causas da guerra foram apresentadas de diversas formas que estimulavam o engajamento, como cerimônias religiosas, desfiles de rua, peças de teatro, canções, poemas e publicações na imprensa. Com isso, buscava-se produzir uma série de elementos que prendessem a atenção do público, ao mesmo tempo que se difundia princípios religiosos, morais, cívicos e políticos que eram apresentados de uma só vez à população de uma vila ou cidade.

Na província do Espírito Santo não foi diferente. Em um levantamento realizado, encontrou-se de cerca de 112 ações de mobilizações cívicas, averiguadas a partir da análise dos periódicos Jornal da Vitoria e Correio da Vitoria, bem como dos documentos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES) e do Arquivo Público Municipal de Vitória (APMV). Abaixo, seguem listados os eventos patrióticos encontrados nas fontes e seu respectivo significado dentro do contexto da Guerra do Paraguai:

       A criação de associações patrióticas: Criadas para angariarem recursos destinados a auxiliar os cofres públicos no esforço de guerra ou doados às famílias dos combatentes que deixaram o Espírito Santo e foram lutar no fronte. Geralmente formadas por indivíduos com boas condições financeiras;

        Bailes: Foram realizados em diversas localidades da província, ao final da guerra, para comemorar a vitória do Brasil.

       Doações pecuniárias: Oferecimentos financeiros em prol das ações de guerra. Alguns funcionários públicos doaram parte de seus salários até o término do conflito, como também cidadãos mais abastados custeavam o transporte de voluntários à capital, realizavam subscrições e ofereciam prêmios aos que se alistassem primeiro para o Exército;

       Eventos religiosos: Celebrações religiosas para interceder ou comemorar os sucessos de uma operação militar aliada. Para cada batalha vencida, celebrava-se o Te Deum, cerimônia solene de ação de graças realizada em dias de grandes efemérides do Império, como o dia da promulgação da Constituição, 7 de setembro e o aniversário do imperador. Com o prolongamento da guerra e a chegada de notícias sobre os combatentes capixabas mortos, houve celebrações fúnebres e de 7º dia em honra de suas memórias;

       Recrutamento voluntário: Oferecimento voluntário para ingressar nas tropas do Exército que se dirigiam ao sul do império. A maior parte do contingente da província do Espírito Santo seguiu como voluntários da pátria;

       Festas cívicas: Festas de caráter civil para comemorar as vitórias aliadas em batalhas importantes, bem como o resultado final. A maior parte delas ocorreu em Vitória, capital da província, e reunia um grande número de participantes. Algumas de suas características era o desfile de bandas de música pelas ruas e a proclamação de discursos patrióticos;

       Teatro: Exibição de espetáculos com temática patriótica ou sobre a Guerra do Paraguai. Em sua maioria, foram encenados na capital e havia cobrança de ingresso;

       Publicações de textos patrióticos, poemas e discursos: Publicações realizadas nos periódicos Jornal da Vitoria e Correio da Vitoria em favor da guerra ou de alguma personalidade que se pretendia exaltar, como o presidente da província e Jovita Feitosa;

        Vendas de livros e estampas: Publicadas nas seções de anúncio dos jornais, consistiam em obras e imagens com a temática militar, responsáveis por divulgar os feitos e os heróis de guerra.

Durante a Guerra do Paraguai, as mobilizações cívicas revelaram o expressivo engajamento da população capixaba no conflito, particularmente dos habitantes de Vitória, palco da maior concentração de eventos e manifestações patrióticas. Registrou-se um amplo repertório de atividades em apoio à causa bélica, que serviam tanto para divulgar os objetivos nacionais, quanto para celebrar os triunfos das tropas aliadas. Essas iniciativas permitiram aos moradores do Espírito Santo manifestar diversas formas de participação, através das quais externalizaram seus interesses, visões, sentimentos nacionalistas e inquietações relacionadas ao conflito. Ao longo do processo de mobilização, a elite capixaba desempenhou o papel de auxiliar do governo provincial dentro do esforço de guerra. Ela, cumprindo as determinações da administração local, instrumentalizou seu capital social e econômico para fomentar o alistamento voluntário. Por meio de um conjunto articulado de ações, desde incentivos materiais até propaganda política em favor da guerra, buscou tanto legitimar-se perante o poder central, quanto reafirmar seu domínio sobre a sociedade local.

Constata-se, portanto, que o conjunto de celebrações não se resumia a ações individuais ou manifestações populares espontâneas. Mas, uma resposta aos esforços de convocação e incentivo do governo provincial e da elite, que buscavam disseminar ideais como patriotismo, abnegação, coragem e união, valores que motivaram centenas de homens a tornarem-se soldados no Exército em operação.

Como o leitor poderá apreciar no inventário documental, na província do Espírito Santo observou-se uma continuidade das mobilizações cívicas ao longo dos anos da guerra. Apesar do descontentamento gerado pelas ações bélicas, especialmente devido à frustração com a prolongação do conflito, que durou até 1º de março de 1870, isso não impediu a ocorrência de manifestações patrióticas e de apoio ao Império. Elas buscaram envolver diferentes segmentos da sociedade, permeando os interesses e as emoções dos capixabas que, mesmo distantes da frente de combate, se manifestaram sobre a guerra, engajando-se na organização de recursos humanos e materiais para o esforço bélico.

Marcos Briel – Historiador 


 O inventário documental e o processo de preservação das fontes primárias

A realização de inventários documentais representa uma etapa fundamental no processo de salvaguarda do patrimônio histórico e cultural. Ao identificar, registrar e descrever acervos de documentos, o inventário não apenas sistematiza o conhecimento sobre as fontes existentes, mas também estabelece critérios para a preservação e o acesso público. Essa prática se insere no campo da Arquivologia como uma ferramenta essencial para compreender a importância   das fontes primárias.

As fontes históricas— registros produzidos no momento ou próximo aos eventos que relatam — constituem uma base imprescindível para a pesquisa histórica e para a construção da memória coletiva. Sua preservação assegura que as gerações futuras possam acessar informações autênticas e confiáveis, contribuindo para a continuidade do saber e o fortalecimento da identidade cultural.

No contexto das políticas públicas de memória, o inventário atua como um instrumento estratégico, permitindo que instituições identifiquem lacunas, estabeleçam prioridades de conservação e ampliem o diálogo com a sociedade por meio da democratização do acesso à informação. Assim, inventariar e preservar documentos não é apenas um ato técnico, mas também um compromisso ético com a história, a cidadania e o direito à memória.

No que diz respeito a digitalização de documentos históricos essa prática constitui uma ação técnica e estratégica voltada à preservação, segurança e difusão do patrimônio documental dessa forma, entende-se que esse processo atua como medida preventiva contra a deterioração física causada por fatores ambientais, manuseio inadequado ou acidentes. Ao criar cópias digitais de alta resolução, é possível minimizar o acesso aos suportes originais e, ao mesmo tempo, assegurar a permanência dos conteúdos para fins de consulta e pesquisa.

Do ponto de vista técnico e legal, a digitalização deve ser conduzida com base em protocolos que assegurem a autenticidade, a qualidade e a rastreabilidade dos arquivos gerados. No Brasil, diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), especialmente por meio do Plano de Classificação e da Tabela de Temporalidade de Documentos, orientam as práticas de digitalização no âmbito da administração pública e instituições de memória. O e-ARQ Brasil, modelo de requisitos para sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos, também oferece parâmetros fundamentais para garantir a interoperabilidade, a preservação digital e a confiabilidade das informações.

Em âmbito internacional, recomendações da UNESCO, do Conselho Internacional de Arquivos (ICA) e diretrizes como a ISO 13028:2010 (sobre digitalização de documentos com valor probatório) fornecem bases normativas que reforçam boas práticas e asseguram padrões de qualidade e segurança digital.

Além disso, a digitalização favorece a ampliação do acesso à informação, eliminando barreiras geográficas e temporais. Os documentos digitalizados podem ser disponibilizados em plataformas online, repositórios institucionais ou sistemas de gestão arquivística, democratizando o acesso ao conhecimento e promovendo maior transparência e visibilidade das fontes históricas. Dessa forma, a digitalização de acervos históricos representa não apenas uma resposta às demandas contemporâneas por acesso à informação, mas também um compromisso com a preservação da memória institucional, cultural e social.

Michel Caldeira de Souza – Arquivista

 

INVENTÁRIO


EQUIPE
Michel Caldeira de Souza
Coordenador - Arquivista 

Marcos Antonio Briel
Lucas Rodrigues Barreto
Pesquisa, Digitalização, Transcrição documental – História

Ivens Erler
Capa, projeto gráfico e editoração


PATROCÍNIO
Lei Rubem Braga
Prefeitura Municipal de Vitória

APOIO CULTURAL
Secretaria Municipal de Cultura de Vitória

PREFEITURA DE VITÓRIA
Lorenzo Pazolini
Prefeito Municipal

Cris Samorini
Vice-Prefeita

Edu Henning
Secretário de Cultura 

Wanya Mayhé
Gerência do Projeto Cultural Rubem Braga

 














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